já chega, vida. próxima ronda
um ensaio emocional sobre depressão, exasperação e a vontade de trocar de jogo
nota: hoje abstenho-me de gravações de áudio — a minha mãe diz que é feio dizer asneiras.
sobreviver também é uma forma de resistência
O filme Ted a dar no background (mais aleatório não podia ser), a lareira acesa, um misto de cheiro a bacalhau com natas no forno com o ambientador de essências de boles d'olor que rolou durante o dia de ontem. Sento-me num canto – o lugar mais seguro desta sala – de frente para a televisão, perto da lareira, a controlar tudo o que entra e sai. Observo esta sala da mesma forma que observo a minha vida: sabendo que nada posso fazer quanto ao rumo que as coisas decidirem tomar.
o que é estar deprimido?
Já conheci várias versões. Daquela que me deixava no chão durante horas, sem conseguir levantar, até à mais silenciosa, disfarçada por trás de metas cumpridas e muitos “parabéns” (a famosa high-functioning depression, que basicamente é estar a morrer por dentro enquanto se continua a sorrir para desconhecidos e responder a e-mails com pontuação perfeita).
Hoje, os sintomas que observo em mim são clássicos: zero motivação, total desinteresse por coisas que a média das pessoas acha entusiasmantes e uma apatia que parece colar-se à pele.
Não quero saber de projetos entusiasmantes, promoções, saídas, diversão. Quer dizer, quero. Mas não consigo querer. E esse é o problema. A única motivação dirige-se a duas, e apenas duas coisas:
Momentos em que vou trabalhar em mim (aka terapias de vários tipos)
Escrita – não como entrega necessária ou vontade de partilhar, mas como a melhor forma que conheço de processar emoções.
E vá, uma terceira – momentos com pessoas que não sabem pelo que estou a passar, e que me permitem esquecer a anormalidade que me sinto por um segundo.
depressão não é só tristeza
E não, não é preguiça, nem drama, nem sensibilidade extrema, nem falta de gratidão. A depressão, segundo o DSM-5, pode manifestar-se de diferentes formas, incluindo perda de interesse ou prazer nas atividades, alterações no sono e apetite, fadiga constante, sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva, dificuldade de concentração, ou pensamentos recorrentes de morte ou suicídio. Nem todas as pessoas têm todos os sintomas, e nem todas os vivem da mesma forma. Mas o que têm em comum? A sensação de desconexão – do mundo, das pessoas, e de nós próprias.
Felizmente, salto muitos destes sintomas. No entanto, não deixo de me afligir com o quanto não me reconheço na vida que estou a viver. E isso é assustador. Muito.
a revolta como bússola
Estou revoltada com a vida – revoltadíssima. E antes que alguém venha com o clássico "tudo acontece por uma razão", deixem-me respirar fundo. Costumava ser a mulher das listas de objetivos. Estou habituada a ver planos falharem – mas este ano parece uma piada de mau gosto, uma avalanche de acontecimentos aleatórios, cruéis até, que me fizeram perder o chão (e com ele o sentido).
Uma carta de um jogo ‘perguntou-me’ se gostaria de viver até aos 150 anos. Achei a ideia agonizante. Há quem esteja a tentar “hackear” o corpo para viver mais – e eu só quero mudar de jogo. “Já percebi esta merda, vida, anda lá com isso, próxima ronda!”
Mas não há próxima ronda. Só há esta.
a esperança não é sempre luminosa
A parte boa de já ter passado por uma depressão é saber que não dura para sempre. A má é que, mesmo assim, dói. Mesmo sabendo que há alegria no futuro, isso não anula o presente. Mas dá alguma esperança – e às vezes, isso chega para mais um dia.
Será que vai correr bem? Sei lá. Provavelmente não. Mas pensar que vai correr mal também não me ajuda.
sobreviver é a única regra do jogo por agora
Sei que estou neste loop há meses. Que o tempo passou e eu não dei conta. Sei que ando a lutar contra a realidade porque ela me parece absurda, injusta e inaceitável. Mas também sei que não tenho outro remédio.
E até lá, faço o quê? Eis a listagem de conquistas:
– não ser atropelada
– não engordar demasiado
– não ser despedida
– não deitar fora o pouco que ainda me resta
E, acima de tudo, sobreviver.
E isso, pelo menos, ainda sou capaz de fazer.
Enquanto isso, nesta vida que ainda não me serve, vou costurando pequenos retalhos de sentido. Uns desbotados, outros improváveis. E talvez, um dia, esta manta improvisada me aqueça o suficiente para eu voltar a acreditar no jogo. Ou, pelo menos, em mim.
Gostei de ler (identifiquei-me, estou a passar por um processo interno complexo). A questão é: mesmo estando a passar por esse deserto de emoções e esperança, produziste um texto objetivo, fluído e cativante. Portanto, há sempre uma réstia de nós em nós.
Força de uma desconhecida que sentiu as tuas palavras.
🫂